Edição 126 – 2010
É melhor prevenir...
A produção sucroalcooleira vitima, por ano, 36 mil trabalhadores. Agora as empresas vão ter que reduzir esse número – ou vão pagar (mais) caro por isso

Flávio Bosco

Coloque mais um item na lista de vantagens de investir em segurança operacional: redução de impostos. A partir deste ano, está valendo o Fator Acidentário de Prevenção - FAP, um multiplicador sobre alíquotas de contribuição ao agora denominado Riscos Ambientais do Trabalho - RAT – imposto que substitui o seguro de acidentes que incide sobre a folha de salários das empresas. Ele tanto pode reduzir a tributação à metade como pode dobrá-la, dependendo da performance de cada empresa no quesito segurança ocupacional. Até o ano passado, o Governo tributava em 1%, 2% ou 3% da folha bruta de salários através do chamado Seguro Acidente de Trabalho - SAT, um imposto que existe desde 1934 e é calculado de acordo
com o nível de perigo por ramo de atividade – leve, médio ou grave.

Diante de um despesa que em 2009 bateu a casa dos R$ 14 bilhões com tratamentos de doenças e acidentes do trabalho – e perante uma arrecadação de R$ 8 bilhões – o Governo decidiu estimular individualmente cada empresa a adotar políticas para reduzir os níveis de acidentalidade.
Primeiro, os setores da economia foram reclassificados
– e atividades ligadas à produção sucroalcooleira que ainda pagavam uma alíquota de 2% do SAT passaram a ser classificados como “risco grave” e pagar a alíquota máxima, de 3%. Em cima disso, cada empresa passou a ter seu imposto calculado individualmente, de acordo com o número de acidentes computados a seu CNPJ. É o que determina o FAP: a empresa que apresentar redução de acidentes de
trabalho poderá abater até 50% na sua contribuição, enquanto a que tiver aumento no número de acidentes
pagará um adicional de até 100%.

O cálculo é feito sobre um ranking que computa sempre o número de acidentes registrados nos últimos dois anos – o primeiro ranking foi feito com dados coletados entre abril de 2007 e dezembro de 2008. A empresa que tiver o menor número de acidentes e doenças ocupacionais – dentro de sua subclasse de Classificação Nacional de Atividades Econômicas– multiplicará seu RAT por 0,5 pontos – o menor índice. No outro extremo da lista, quem apresentar o nível mais elevado de frequência, gravidade e custo dos
acidentes, terá multiplicado por dois seu imposto. Nessa conta, os diferentes tipos de acidentes têm pesos diferentes – morte, por exemplo, têm peso maior que os registros de auxílio-doença. Sem contar que as empresas com óbitos ou invalidez permanente não serão beneficiadas com a redução do FAP – exceto quando os investimentos em melhoria na segurança do trabalho forem certificadas por
sindicato dos trabalhadores e dos empregadores.

O cálculo também considera a taxa de rotatividade de
empregados – quando essa taxa ultrapassar 75% a empresa não tem acesso aos bônus. “A segurança do trabalho no Brasil vai se dividir entre antes e depois do FAP. Até então, um mesmo grupo econômico pagava o mesmo tributo em termos de seguro de acidente, o que gerava uma
distorção: qual seria o interesse de uma empresa investir em segurança se ela pagasse os mesmos 3% de outra empresa que não tinha nenhum investimento?”, avalia o advogado Luis Augusto de Bruin, consultor técnico da Bracol, fabricante de calçados e luvas de proteção.

Levantamento apresentado pelo ministério da Previdência Social aponta que 879.933 empresas – 92,37% de um universo de 952.561 empresas – foram bonificadas na aplicação do FAP. 72.628 empresas – 7,62% daquele total – tiveram a alíquota de contribuição ao Seguro acidente majoradas em 2010. O FAP só não incide sobre a contribuição de 3.328 mil pequenas e microempresas que recolhem os tributos pelo sistema Simples Nacional, e
estão isentas da taxação do Seguro Acidente. O problema está no reenquadramento: de acordo com cálculos da Confederação Nacional da Indústria, 866 das 1301 atividades econômicas previstas na legislação viram aumento em suas alíquotas de contribuição. “Ninguém tem evidência de que 92% das empresas pagarão menos. Só conheço empresas que estão pagando mais, principalmente
do setor sucroalcooleiro”, conta Norberto Pompermayer,
médico do trabalho ligado à Ambiental, que vem prestando assessoria no assunto para usinas paulistas.

Um estudo elaborado pela consultoria Tendências esmiuçou algumas inconsistências na nova metodologia: para obter o maior desconto possível, uma empresa precisa ter nível zero de acidentes e doenças e torcer para que suas concorrentes tenham o máximo possível. O relatório também aponta que a comparação também não leva em
consideração a região na qual a empresa atua – o que pode ser um fator relevante quando se trata de acidente de trabalho.

 
O RAT e o FAP atendem a um bom princípio. Mas a metodologia
não está isenta de contestações

Ninguém discorda do princípio: quem provoca mais acidentes deve pagar mais. Mas a nova metodologia já teve
críticas e questionamentos na Justiça – principalmente
sobre a fórmula para calcular a posição das empresas no ranking das atividades econômicas. O sistema não permite checar os números individuais dos concorrentes – resta trabalhar com o que afirma a Previdência Social, e tentar contestar eventuais erros que forem aparecendo, como
a quantidade de acidentes e doenças do trabalho creditados em sua conta. “Para o governo cobrar esse novo imposto em janeiro, teria que respeitar a noventena. Só que em setembro faltavam dados, e as empresas não tinham como calcular o FAP.

Aos poucos foram aperfeiçoando o sistema, que só ficou completo em dezembro – e houve empresa que não aceitou o FAP, porque não teve nenhum acidente”, conta o Dr. Norberto. Empresas e sindicatos patronais têm conseguido suspender na Justiça a nova forma de cobrança. Desde dezembro do ano passado, 16 decisões favoráveis a empresas foram proferidas nos Tribunais Regionais – parte por conta de erros nas informações utilizadas para o cálculo do FAP. Outras empresas preferiram discutir diretamente a legalidade das novas regras ao majorar as alíquotas do SAT, que só poderiam ser alteradas por meio da edição de uma nova lei.

Representantes patronais também reclamam das mudanças em relação à base de dados do Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário - NTEP, que a partir de 2007 passou a relacionar as doenças com a prática de uma determinada atividade econômica. Foi a forma que o Governo criou para impedir as subnotificações de acidentes – com esse novo procedimento, o empregado não depende
mais da empresa para emissão do Comunicado de Acidente de Trabalho - CAT para requerer um benefício da Previdência.

As bases dessa metodologia surgiram em uma tese de doutoramento do assessor da Secretaria Executiva do Ministério da Previdência Social, Paulo Rogério Albuquerque de Oliveira, na Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília. Oliveira usou o banco de dados do INSS para identificar os problemas de saúde que mais
acometeram os trabalhadores brasileiros entre os anos 2000 e 2004 e as áreas em que atuavam para identificar acidentes e doenças comuns a determinados ramos de atividade – é o caso, por exemplo, das enfermidades relacionadas ao sistema osteomuscular, que apresentam altas taxas de incidência entre os trabalhadores do setor sucroalcooleiro (veja quadro na página 000). Com base nos dados estatísticos, quando há relação entre a doença e
o setor de atividade econômica do trabalhador, o nexo epidemiológico determinará automaticamente que se trata de benefício acidentário e não de benefício previdenciário normal.

Com a adoção dessa metodologia, o ônus da prova passa a ser do empregador e não mais do empregado – é a empresa que deverá provar que a doença ou o acidente não foi causado pela atividade desenvolvida pelo trabalhador. Dois pontos preocupam a maior parte das empresas: o primeiro é a forma de contestação perante a justiça – que
significa mais despesas – jurídicas e técnicas, para a comprovação do não-nexo entre a atividade e a doença. E quando um nexo técnico epidemiológico é caracterizado, o empregador é obrigado a oferecer estabilidade ao empregado e continuar depositando seu FGTS em conta. Além disso, o trabalhador ainda pode ingressar com ações de pedido de ressarcimento pelo agravamento da sua saúde
– que pode resultar em indenizações que têm beirado a casa dos milhões de reais. “Isso seria um pouco mais eficaz se tivesse sido feito por posto de trabalho, e não por atividade de empresa”, avalia Luis Augusto de Bruin.


A partir de agora, paga mais quem
apresentar mais acidentes

Na prática, um acidente vai custar caro, bem mais caro, do que um simples arranhão na imagem. No início do ano, a Cosan viu suspensas as operações com o BNDES e o contrato de fornecimento com o Walmart só porque seu nome apareceu na lista de empregadores acusados pelo
Ministério do Trabalho de manter funcionários em situação análoga à escravidão. A entrada em vigor do FAP torna mais tangível o cuidado de proteger os empregados: a empresa que não conseguir apresentar números de acidentes menores do que a média de seu setor verá aumentado o valor de contribuição do imposto.

Apesar da complicação, a nova metodologia segue um princípio simples: a tentativa do Governo de incentivar a cultura da prevenção. De acordo com o mais recente Anuário Estatístico do Ministério da Previdência Social, feito com dados de 2008, em um ano foram registrados 747.663 acidentes do trabalho. Só o cultivo da cana acidentou oito mil empregados – com uma média de trinta mortes nos últimos três anos. Na fabricação do álcool e do açúcar foram mais 28 mil acidentados – sendo 79 mortes. Sozinha, essa cadeia acidenta quase cem empregados por dia.

Zerar esses altos índices de frequência, gravidade e custos, no entanto, não é uma tarefa fácil. Primeiro é necessário entender porque os acidentes acontecem – e aprender com eles. Num setor tão complexo – que reúne um grande número de pessoas e uma diversidade de riscos nos canaviais, torres trabalhando a altas pressões e temperaturas, e líquidos inflamáveis percorrendo tanques e
dutos – o problema vai além da implementação de sistemas de gestão de segurança.

A maior causa dos acidentes pode ser atribuída a algum tipo de falha humana – mesmo que essa falha não possa ser diretamente imputada às pessoas. Frequentemente as suas causas reais derivam de falhas gerenciais ou diretamente
de falhas organizacionais relacionadas à cultura de segurança da empresa. É o que o professor de psicologia da Universidade de Manchester, James Reason, denomina como “falhas latentes da organização” – para Reason, no ambiente está a maior motivação para os erros.

O que o sistema de gestão deve fazer é reduzir o risco – e, como na aviação, adotar novas práticas a partir das lições apreendidas com os acidentes. O poderoso computador implantado dentro da nossa caixa craniana pode ter uma rede de 100 bilhões de neurônios e 100 mil quilômetros de conexões. Mas ele tem limites para internalizar um comportamento – e de vez em quando também trava. O primeiro problema está na percepção dos riscos, que não é a mesma para todas as pessoas. “O ser humano é suscetível a uma série de emoções e ações, que podem propiciar um acidente de trabalho”, explica Luis Augusto
de Bruin, lembrando que ainda falta um pouco de conscientização, do próprio trabalhador, quanto ao cumprimento das normas de segurança e o uso de equipamentos de proteção.

Mesmo sem um levantamento oficial sobre gastos com
segurança operacional, o presidente do Grupo de Saúde Ocupacional da Agroindústria Sucroalcooleira, Mario Marcio dos Santos, afirma que as usinas têm ampliado os investimentos em treinamentos, aquisições de EPIs e sistemas de segurança. A Usina Guaíra, onde Mario Marcio gerencia o setor de Segurança e Saúde do Trabalho, adotou os testes de bafômetro e os cursos de direção defensiva para os motoristas da empresa e da lavanderia agrícola
para a higienização de EPIs. Também mantém um programa de gestão informatizado para controle da Cipa, dos equipamentos de segurança, das estatísticas de acidentes e do perfil profissiográfico previdenciário dos funcionários – e controle rígido de todo o planejamento. “Esse é um sistema muito forte de integração de pessoal”.

Portarias regulamentam normas de
fabricação de EPI

Aquela história de luvas que machucam, botas que causam bolhas, vestimentas que mais servem à fiscalização do que à proteção contra agentes químicos e óculos que não protegem acabou. As novas portarias referentes a Norma Regulamentadora NR-6 – que rege a concepção e fabricação de equipamentos de proteção individual consideram a atividade e o usuário.

Pelo que determina a Portaria 121, de setembro do ano passado, os EPIs devem ser concebidos para propiciar o nível mais alto possível de proteção – o equipamento não pode, por exemplo, provocar irritação ou ferimentos, nem deve apresentar efeitos nocivos à saúde. Outra novidade é a entrada do Inmetro na avaliação dos EPIs. “Isso foi algo
importante. Empresas de fundo de quintal agora fecharão”, aposta Mario Marcio dos Santos.

Consensualmente, um EPI não evita um acidente O que ele faz é atenuar as consequências – o problema é quando essas consequências se tornam graves justamente pela falta do uso do equipamento de proteção individual. “Há um erro crucial ao considerar os EPIs como protetores contra
quaisquer fatores de risco. Quando adequados, eles auxiliam os trabalhadores a se proteger de riscos específicos”, alerta a pesquisadora da Fundacentro, Maria Cristina Gonzaga.

Em sua tese de mestrado, defendida na Faculdade de Engenharia Agrícola da Unicamp, Maria Cristina constatou que, pela inadequação, as luvas de proteção dificultavam o corte manual da cana. O empregador é obrigado, pelas normas regulamentadoras NR-6 e NR-31, a fornecer gratuitamente os EPIs e fiscalizar o uso dos equipamentos,
sob risco de multa. Como é a empresa que define qual a marca e modelo será comprado, os problemas acabam sempre nas mãos do trabalhador.

A partir da Portaria 121, que regula os princípios obrigatórios na concepção e fabricação de EPIs, esses equipamentos devem levar em consideração o conforto e a facilidade de uso por diferentes grupos de trabalhadores e devem ser tão leves quanto possível, sem prejuízo de sua eficiência, e
resistentes às condições ambientais previsíveis. Junto, novas portarias estão trazendo padrões para fabricação desses equipamentos. “Não se pode esquecer que as empresas são responsáveis pela aquisição dos EPIs e também pela avaliação da adequação dos EPIs a cada trabalhador, cuja individualidade tem que ser respeitada.

Os EPIs, mesmo aprovados pelo Ministério do Trabalho, devem ser testados para cada trabalhador, contextualizado em determinada atividade de trabalho. O que encontrei nos meus estudos foi uma conduta inadequada por parte das empresas em aspectos primários, como por exemplo, a compra de EPIs aleatoriamente, sem considerar sequer
o tamanho de cada mão”, destaca a pesquisadora da Fundacentro. O processo de certificação agora passa por um Organismo de Certificação de Produto - OCP acreditado
pelo Inmetro. Para obter o certificado de conformidade, a empresa fabricante terá que passar o EPI pelo ensaio em laboratório para receber o Certificado de Aprovação – sem esse certificado, o equipamento não pode ser comercializado nem fornecido ao trabalhador.

O desenvolvimento tecnológico observado desde a abertura do mercado às importações também ajudou na concepção de equipamentos mais adequados. O mangote que protege os braços, antes feito com pernas de calças usadas, já é fornecido por algumas empresas como equipamento obrigatório. E o par de botinas com biqueira de aço, que
pesavam dois quilos, agora pesam 500 gramas. A partir de março de 2005, quando a Norma Regulamentadora NR-31, de Segurança e Saúde no Trabalho na Agricultura, foi publicada, as usinas começaram a incorporar inúmeros avanços relacionados ao uso de agrotóxicos, ergonomia, a proteção de máquinas e equipamentos e ferramentas manuais.

“Sabemos que existem problemas. Mas o importante
é que as empresas estão trabalhando para resolver”, finaliza Mario Marcio. Nunca antes na história desse país, prevenir foi tão melhor do que remediar.


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