Edição 114 – 2008

Choque Cultural

Divulgação/Abracopel
Instalação elétrica inadequada em empresa nacional: se considerar acidentes de trabalho e domésticos, a eletricidade mata, por ano, mais do que quatro aviões como o da TAM

Para especialistas, nova NR-10 deve ser acompanhada de mudança na cultura nacional para aumentar segurança do trabalhador e reduzir acidentes com eletricidade no Brasil

por Luiz Baleotti

Em recentes visitas a algumas usinas de açúcar e álcool do interior paulista, o engenheiro eletricista Edson Martinho, presidente da Abracopel (Associação Brasileira de Conscientização para os Perigos da Eletricidade), detalhou aos engenheiros responsáveis pelas empresas as mudanças impostas pela segunda revisão da NR-10 (Norma Regulamentadora) que implementa obrigatoriamente várias exigências para garantir a segurança dos trabalhadores nos serviços elétricos).

Martinho detectou que uma das usinas apresentava diversos procedimentos contrários às recomendações da Norma - mantinha, por exemplo, dimensionamento de dispositivos de proteção inadequados em áreas potencialmente inflamáveis e faltava uma orientação aos profissionais que trabalham com eletricidade.

O presidente da Abracopel alertou a empresa sobre a necessidade de correções para adequação à nova NR-10. Como resposta, relata ter ouvido do engenheiro responsável pela unidade industrial: “A nossa planta tem mais de 50 anos e adequá-la custará muito. O que fizemos é explicar para o funcionário que ele tem que tomar cuidado e torcer para que não aconteça nenhum acidente”.

Se mantiver este pensamento, a usina terá que torcer – e rezar – bastante para não sofrer um acidente. Sem medidas de segurança e equipamentos carentes de dispositivos de proteção, a unidade e seus funcionários estão expostos a vários riscos: choque elétrico e ocorrência de sobre-aquecimento em fios, cabos e dispositivos, circunstância que provocar incêndios.

Ao não mapear as suas áreas classificadas e oferecer treinamento específico aos funcionários do setor elétrico, a usina também permanece sujeita a uma eventual explosão.

Mas a usina paulista não é um caso isolado de insegurança em instalações elétricas. Essa é a realidade em muitas outras unidades de diversos setores industriais do País. Mais de três anos depois da segunda revisão da Norma e um ano após a expiração do prazo para adequação, muitas empresas ainda caminham a passos lentos para a adaptação à NR-10.

Sem a devida segurança, essas empresas estão literalmente “brincando com fogo”. Elemento indispensável à quase totalidade dos processos de trabalho e à vida moderna, a eletricidade é um agente de elevado risco, causador de acidentes graves.

A eletricidade tem grande potencialidade para causar danos de gravidade muito elevada, desde uma simples contração muscular, seqüelas graves, queimaduras profundas, parada cardíaca e até óbito.

A diferença entre sorte e morte de um acidentado é determinada por alguns volts e alguns segundos de tempo.

De acordo com pesquisas não oficiais, de cada três choques, um é fatal, enquanto que, em outros tipos de acidentes, ocorre uma morte para cada 200 ocorrências, em média. “Por isso, a eletricidade deve ser respeitada, o que nem sempre acontece suficientemente, por conta do convívio habitual e sistemático com ela, desde que acordamos até enquanto dormimos. Daí a familiaridade e até a banalização do risco elétrico”, afirma o engenheiro eletricista e de segurança João José Barrico de Souza, um dos elaboradores da nova NR-10.

Estimulada por ignorância ou negligência, a falta de segurança alimenta as estatísticas sobre mortes, acidentes e explosões causados por energia elétrica no Brasil. Embora o País não registre dados oficiais de ocorrências em empresas consumidoras de energia elétrica, um cálculo estimado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) revela um panorama preocupante.

O coordenador geral da área de segurança elétrica do MTE, Joaquim Gomes Pereira, se baseia estatísticas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) em paralelo com dados de acidentes em outros países para calcular um número mínimo de ocorrências com eletricidade no Brasil.

A última estatística divulgada pelo INSS, referente ao fechamento de 2006, relata 2718 mortes em todo o território nacional provocadas por acidentes de trabalho. “Com base nas estatísticas de outros países, em que a energia elétrica envolve de 18% a 20% desses acidentes de trabalho, podemos dizer que cerca de 550 mortes foram causadas por energia elétrica”, estima Pereira.

O número na prática é ainda maior, porque o cálculo considera apenas o número de profissionais registrados no INSS, que hoje representam apenas 38% da massa trabalhadora nacional - 62% não participam da estimativa de Pereira.

As estatísticas oficiais sobre as áreas ou empresas ligadas à eletricidade (distribuidores, geradores e transmissoras de energia elétrica) – que envolvem também as ocorrências domésticas - elevam ainda mais o número de mortes e acidentes no Brasil.

A partir de 1990, a Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee) e a Fundação Coge iniciaram a implementação de uma coleta sistemática de dados de acidentes da população com a rede elétrica das concessionárias. A última análise divulgada, referente ao período de 2001 a 2006, mostra uma média anual de 986 pessoas acidentadas, sendo 323 fatais.

Mas, segundo o presidente da Abracopel, a maior porcentagem das estatísticas não apresenta a fonte especificada, porque nos hospitais brasileiros não se identifica o fator causador do óbito, apenas o que aquela causa determinou ao indivíduo. “Se a pessoa estava tomando banho e recebeu um choque elétrico (a causa) e, por isso, teve uma parada cardíaca (conseqüência da causa) e morreu, em seu atestado de óbito aparecerá morte por parada cardíaca. É por isso que os números registrados, com certeza, devem ser dezenas de vezes maior”, explica.

Divulgação/SP Studio

Precariedade com que são prestados os serviços de eletricidade no Brasil é uma das causas de tantos acidentes: por isso, a Norma exige treinamento específico para os eletricistas

Jeitinho brasileiro

Estatísticas não oficiais apontam que 30% dos acidentes com eletricidade acontecem no trabalho e cerca de 40% no ambiente domiciliar. Segundo especialistas, as principais causas de ocorrências nas empresas são falta de informação, uso inadequado de equipamentos elétricos, instalação incorreta e profissionais sem qualificação. 

Para Joaquim Gomes Pereira, os grandes fatores de acidentes estão associadas à falta de entendimento dos males que a eletricidade pode provocar e a ausência de conhecimento das medidas de proteção adequadas. “As causas são diversas. Mas duas são fundamentais: qualificação e capacitação dos trabalhadores e precariedade com que são prestados os serviços de eletricidade no Brasil”, frisa.

Os especialistas são unânimes em apontar a principal carência: a qualificação adequada do trabalhador. É muito comum nas empresas a figura do funcionário “faz-tudo” em cargos que deveriam ser ocupados por profissionais capacitados. “O que existe é o profissional que aprendeu a ‘tocar de ouvido’. As pessoas eram contratadas como pedreiro, por exemplo, aí passavam para serviços gerais e viravam eletricista. Mas não tinham formação teórica. Não havia preparo técnico. Uma empresa que tem profissional assim vai ter aumento de acidentes e convive com riscos.”, explica o engenheiro eletricista Estellito Rangel Junior, especialista em instalações Ex. 

Segunda carência, a precariedade da realização dos serviços elétricos no Brasil é resultado de despreocupação com equipamentos de segurança, muita improvisação aplicada e falta de procedimentos adequados, conforme relata Gomes Pereira.

De acordo com os especialistas, os dois fatores são filhos de um conceito culturalmente arraigado no Brasil. “O País tem aquele característico jeitinho brasileiro de ser, que faz parte da cultura nacional”, aponta o coordenador do MTE. “Infelizmente, no Brasil, a vida não é tratada como um assunto sério. A segurança é item de segunda necessidade. Isso acontece também com os carros, por exemplo, em que o motorista prefere um banco de couro a um air bag”, exemplifica Martinho, da Abracopel.

Para acelerar o processo de mudança cultural e frear o aumento sistemático do número de acidentes envolvendo eletricidade, o Ministério do Trabalho e Emprego resolveu adotar uma postura séria e promoveu em 2004 a segunda revisão da NR-10, criada em 1978.

De caráter obrigatório, a nova edição da NR-10 estabeleceu uma série de novas exigências, especialmente para os serviços em áreas classificadas, que agora contam com requisitos explícitos antes não exigidos.

A NR-10 obriga a regularização dos sistemas elétricos das unidades industriais sujeitas a riscos de explosão por gases, vapores, poeiras ou fibras. Estão incluídas neste contexto empresas dos segmentos químico, petroquímico, petróleo, gases, açúcar e álcool.

A NR-10 fixa condições mínimas para garantir a segurança dos empregados que trabalham em instalações elétricas, em suas diversas etapas, incluindo projeto, execução, operação, manutenção, reforma e ampliação e, ainda, a segurança de usuários e terceiros.

“Para que a adequação seja garantida a empresa precisa ter documentação atualizada, e comprometimento e integração com sistema de segurança: tem que ter procedimentos, liberação de serviços, acompanhamento de trabalhadores. Esse é o ponto chave da nova NR-10”, resume Rangel Jr.

Outro ponto fundamental da Norma, apontam os especialistas, é a exigência de treinamento especifico dos eletricistas, instrumentistas e dos profissionais que de alguma forma lidam com os riscos de explosão. A NR-10 deixa o conceito explícito: para trabalhar em eletricidade tem que ser eletricista.

As empresas que não cumprirem as exigências estão sujeitas a penalidades severas, desde notificações e multas – que podem variar de R$ 700 a R$ 6000 por item não conforme – até embargos e interdições. As paralisações serão aplicadas quando houver grave e iminente risco na ação – a falta de treinamento de uma frente de trabalho é um exemplo.

Para os especialistas, a nova edição da NR-10 é um notável divisor de águas na questão da segurança dos trabalhadores no Brasil. Eles acreditam que as exigências e a obrigatoriedade da Norma vão, pelo menos, minimizar o risco de acidentes. “Acho que devemos comparar com o que o resto do mundo está fazendo com relação à prevenção.

Estamos exatamente no mesmo patamar do resto do mundo, onde este universo é regido por normas internacionais. Nós temos uma norma no mesmo nível das leis mundiais”, acredita engenheiro eletricista Nelson Lopez, presidente da Associação Brasileira para Prevenção de Explosões (ABP-Ex).

Divulgação
Bomba de produto inflamável acionada por motor elétrico através de uma botoeira local liga-desliga, ambos certificados para uso em áreas classificadas: além de garantir a segurança do usuário, é um requisito legal, previsto inclusive na
NR-10.

Adequação lenta

Mas, embora tenha provocado um impacto grande no sentido de alertar sobre a importância da segurança em eletricidade e acerca da fiscalização, a lei que trouxe uma série de avanços em relação à segurança em serviços com eletricidade ainda não conseguiu gerar resultados efetivos em redução de acidentes.

O maior argumento alegado para a dificuldade de adaptação às novas medidas de segurança é o custo. Para Edson Martinho, o problema está no tempo em que as empresas deixaram de fazer as instalações corretas. “Durante anos fizeram gambiarras, amarra-arame, ajustezinhos e o provisório vai se tornando permanente. Quando chega uma norma e exige adequação, substituição de vários equipamentos, se descobre que é caro. Mas se tivesse planejamento anterior, hoje custo seria muito menor”.

Por isso, atualmente a maior parte das empresas ainda não está razoavelmente adequada às novas exigências. “O prazo expirou há um ano. De uma forma geral, a norma está sendo implantada. Mas as empresas são brasileiras e nós sempre deixamos para a última hora. Então, tem muita empresa ainda correndo atrás da adequação”, constata Pereira.

A adaptação está concentrada principalmente nas multinacionais e grandes companhias, que já possuem dotação orçamentária e muitas das ferramentas administrativas e de controle exigidas pela NR-10. Segundo Barrico, as pequenas e médias muitas vezes têm que adotar todo o sistema gerencial que a Norma estabelece.

Além das multinacionais e grandes empresas, que já se preocupavam com segurança até antes da publicação da NR-10, os especialistas dividem o nível de adequação em outras três categorias: empresas que se informaram logo após a revisão da Norma e estão na fase final de adaptação; empresas que não tem a estrutura organizacional tão bem elaborada, mas já iniciaram adaptação; e as empresas, geralmente as pequenas, que ainda nem começaram e adotaram a filosofia popular “deixa como está para ver como é que fica” - e ainda continuam colocando como eletricista pessoas sem qualificação.

Mesmo entre aquelas que já iniciaram a adequação, há ainda empresas que optam por atender a requisitos mínimos. “É um grande problema o pessoal que age assim para não ser multado. A preocupação deve ser com a saúde e a segurança do trabalhador. Mas quando a empresa vai pelos requisitos mínimos, sempre procura uma saída para gastar menos. Com isso, pode comprometer a segurança”.

O setor sucroalcooleiro possui empresas nas quatro categorias, mas, conforme apuração de Alcoolbrás, as usinas ainda figuram principalmente nas duas últimas. (Veja texto página 37). “Sabíamos que aceitação, cultura e implantação acabam demorando alguns anos.

Não tinha esperança de que vencidos os prazos a NR-10 estivesse integralmente aplicada e implementada no País, admite Gomes Pereira. Mas, para ele, é satisfatório saber que a NR-10 tem sido discutida e implantada em muitas empresas.

Para os especialistas, o sucesso da Norma e a efetiva redução de acidentes vão depender, além de maior conscientização sobre a importância de garantir a segurança dos trabalhadores, de rigor na fiscalização. “No Brasil, só quando a fiscalização intensificar as autuações, e o Ministério Público começar a interditar e sentenciar em cima de indenizações é que realmente começa a ter uma preocupação maior no tocante do cumprimento da Norma”, acredita Pereira.

Os elaboradores da Norma reconhecem que, mesmo com a fiscalização, a adequação global demorará. “Estamos no caminho certo. A NR-10 impõe uma mudança de cultura e isso esbarra em vícios e costumes antigos. A Norma vai se impondo, mas isso não se faz de um dia para outro”, justifica Barrico.

Mesmo com as dificuldades, as autoridades e os especialistas estão empenhados em acelerar esse choque cultural no Brasil. Segundo Estellito Rangel Junior, a realidade ainda está longe do ideal, mas a meta é bem definida - será perseguida. “Nosso objetivo é a adequação total à NR-10, rumo ao acidente zero em eletricidade”, crê.

SAIBA MAIS:

A ABP-Ex e a Project-Explo estão disponibilizando gratuitamente um exemplar do Pequeno Manual Prático de Instalações Elétricas em Atmosferas Explosivas - NR-10 - Segunda Edição. Trata-se de um livro de bolso que compila algumas das principais informações para os profissionais de elétrica, instrumentação, segurança, que lidam diariamente com instalações elétricas em atmosferas explosivas por gases, vapores ou poeiras. Informações: (11) 5071.1324

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