Edição 113 – 2008

O lixo que vira luz

Divulgação/Grupo Zanini
Planta de geração de energia em usina paulista: potencial do setor pode ser expandido em cinco vezes

Pode virar também uma das soluções para uma possível crise energética no Brasil: com os rejeitos bagaço e palha, setor sucroalcooleiro promete suprir 15% das necessidades elétricas nacionais nos próximos anos

por Luiz Baleotti

O próprio nome já soa pejorativo. Substantivo, o termo bagaço geralmente é usado como adjetivo, para definir situações de declínio, quando se transforma em desígnio de restos, sobras sem utilidade. A palavra palha apresenta perfil semelhante, com classificações capazes de ilustrar insignificância.

Mas o setor sucroalcooleiro e o Brasil estão descobrindo dois novos significados para os produtos resultantes da colheita e do processamento da cana-de-açúcar. Cada muda de cana plantada no País não é mais apenas o início da produção de açúcar e álcool – da terra também brota energia elétrica.

Antes resíduos de destinação inconveniente, a palha e o bagaço estão se tornando sinônimos de dinheiro para as usinas. E sinônimos de solução para um problema iminente, ou pelo menos, provável no Brasil, evidenciado recentemente com a crise do gás.

Amplamente discutidas pelo setor sucroalcooleiro, as potencialidades da biomassa da cana ganharam maior destaque nacional a partir de novembro de 2007, quando a Petrobras se viu obrigada a limitar temporariamente a entrega de gás às distribuidoras para direcionar o produto à geração de energia das usinas a gás natural – os reservatórios das hidrelétricas apresentaram níveis próximos à margem de segurança.

A possibilidade da falta de gás natural preocupou os consumidores - de carros e indústrias - e reavivou o debate sobre a possibilidade de novo racionamento de energia, como aconteceu em 2001. Naquele ano, a falta de planejamento governamental e a estiagem obrigaram a adoção de um programa de economia do insumo no Brasil.

Segundo o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, a preocupação é alarmista e desnecessária. “Esse país já tem energia garantida até 2012”, refutou. Mas, de acordo com especialistas, a situação não é tão cômoda assim.

Há atualmente um desequilíbrio estrutural (oferta firme de energia inferior

ao consumo) de cerca de 2.500 MW médios – a diferença equivale à capacidade de geração firme da “mega-usina” hidrelétrica de Santo Antônio, no Rio Madeira, que foi recentemente licitada.

Segundo a PSR, consultoria voltada para o setor elétrico e de gás natural, este desequilíbrio resulta da perda acumulada de cerca de 6 mil MW médios de capacidade de geração nos últimos três anos, déficit causado pelas dificuldades atuais de suprimento de gás em três países: Argentina, Bolívia e Brasil.

De acordo com os analistas, além dessa perda, nos próximos anos o Brasil passará um grande processo de crescimento do consumo energético. O País tem instalado, atualmente, cerca de 100.000 MW e a demanda de energia crescerá aproximadamente 5% ao ano, segundo dados da consultoria Koblitz, empresa especializada em engenharia de sistemas elétricos.

A estimativa aponta que, em 10 anos, o Brasil terá que implantar cerca de 50.000 MW ao sistema elétrico nacional, ou seja, 50% de toda energia que existe hoje, sendo, portanto, 5.000 MW por ano.

A projeção foi reforçada com a divulgação dos últimos números oficiais referentes ao consumo brasileiro de eletricidade. O levantamento compreende o período de 12 meses entre novembro 2006 a outubro 2007.

Preparação do bagaço para incineração na caldeira: antes tratado como inconveniente, resíduo hoje é sinônimos de lucro

Cresceu o número de máquinas funcionando nas indústrias, mais casas tiveram acesso à luz, a atividade comercial expandiu. Para movimentar a economia, o Brasil precisou de mais energia. O aumento de 5% no consumo no período 12 meses representa a maior demanda por energia elétrica desde 1997. Segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), 2007 terminará com crescimento de consumo de 5,3%.

A comprovação da curva de crescimento alimenta a tese defendida por alguns especialistas de que há ameaça uma crise energética nos próximos anos no Brasil. O consultor Mário Veiga, diretor da PSR, ressalta que o desequilíbrio estrutural entre oferta e demanda não leva, necessariamente, a um racionamento, mas torna o sistema de geração mais vulnerável à ocorrência de secas severas.

Portanto, se o Produto Interno Bruto do País realmente crescer cerca de 4% a 5% ao ano, como previsto, e não chover adequadamente, poderá haver problema de falta de energia elétrica a partir de 2009. “É uma questão de chuva. Se a hidrologia for boa, não teremos problema. Mas já estamos começando a viver perigosamente”, diz o diretor-presidente da Koblitz, Luiz Otávio Koblitz.

Com uma farta bacia hidrográfica, a geração de energia elétrica no Brasil é baseada em um parque predominantemente hidráulico, que representa 84% da matriz nacional. No entanto, embora ainda haja potencial, um empreendimento hidrelétrico, entre licenciamento e construção, demora cerca de 10 anos para entrar em operação. “Mas o problema da crise energética do Brasil é urgente. Precisamos gerar novos Megawatts (MW) em um prazo máximo de três anos”, afirma Koblitz.

De acordo com a EPE, o aumento da demanda de 2010 para 2011 é 2.900 MW médios. A empresa considera que 1.500 MW médios (energia firme) de oferta já foram contratados, faltando, portanto, 1.400 MW médios. “Entretanto, pensamos que ainda falta contratar 800 MW médios a mais do que diz a EPE, isto é, se o PIB crescer em média 4,8%, será necessário adicionar 2,2 mil MW médios de energia firme em 2011”, afirma Mário Veiga.

Os números foram calculados pela 3ª edição Programa Energia Transparente, realizado pela PSR em parceria com o Instituto Acende Brasil. O projeto faz um monitoramento permanente dos cenários de oferta e do risco de racionamento. Segundo Veiga, a conclusão do estudo representa um sinal de alerta para que sejam acionados os instrumentos capazes de assegurar esta nova oferta - mas ainda não significa um alarme indicando que a sociedade deveria se preparar para um racionamento.

Para que não haja riscos de racionamento, além de muita chuva, algumas providências são necessárias. Conforme o Programa Energia Transparente, a primeira é garantir o cronograma de aumento da oferta de gás como previsto no Termo de Compromisso entre a Petrobras e a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Os pontos críticos são o aumento da produção de gás no Espírito Santo e a entrada do gás natural liquefeito (GNL), ambos em 2008 e 2009. “A Petrobras está empenhada neste processo de aumento da oferta”, assegura Veiga.

A segunda providência é buscar novas alternativas, para contratação de capacidade adicional de geração, de preferência para entrada em operação em 2009.

O uso de termelétricas a carvão, gás ou óleo são opções, mas têm contra si o argumento de “que sujariam a matriz energética” por usarem combustíveis fósseis. Os analistas do setor elétrico apontam que, a curto prazo, a melhor solução é o incentivo aos combustíveis renováveis e geradores de pequena escala, caso dos projetos de geração de energia através da biomassa de cana-de-açúcar.

“As fontes alternativas apresentam qualidade significativa, têm preços competitivos e têm, sobretudo, prazo. No momento em que se decide fazer uma geração em uma usina de açúcar e álcool, são necessários de 24 a 36 meses no máximo”, ratifica Koblitz.

Outros argumentos pró-bioeletricidade são a concentração de projetos na região Centro-Sul do Brasil, onde está o “coração” do sistema gerador e a oferta disponibilizada durante a safra da cana, de maio a novembro, nos meses de menor hidrologia, o que a torna altamente complementar à sazonalidade hidrelétrica

O setor sucroalcooleiro demonstra disposição para assumir a responsabilidade de ajudar o Brasil a garantir o suprimento de energia elétrica para o ritmo de crescimento que o País vem apresentando. “Se tivermos a inteligência suficiente para desenvolver um programa adequado de ajustes regulatórios e incentivos, o setor poderá suprir 15% das necessidades elétricas nacionais ou o equivalente a quase duas usinas do porte de Itaipu”, assegura o presidente da União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Unica), Marcos Jank.

Elaboração: Unica

30 mil MW

A agroindústria canavieira nacional possui hoje cerca de 3.000 MW de potência instalada, que não é totalmente utilizada. As usinas comercializam apenas uma parte do volume gerado (600 MW), outra parcela produzida é auto-consumida - mais de 2000 MW durante a safra. Vendida, a energia do bagaço e da palha representa menos de 1% da matriz nacional – considerando outros resíduos, a biomassa corresponde a 4,2% do total consumido no País.

Marcos Jank, da Unica: “A bioeletricidade é uma solução renovável, de curto prazo, disponível nos principais centros de consumo e com oferta nos meses de menor hidrologia”

Sem plantar nenhuma nova muda de cana, o setor já poderia produzir mais energia. Apenas com modernização tecnológica das unidades já existentes, o setor poderia dobrar a potência oferecida, estima a PSR.

Das cerca 360 usinas em funcionamento, praticamente todas geram o insumo para a sua própria demanda, mas apenas 10% aproximadamente comercializam excedentes para o mercado. Segundo a Unica, algumas unidades ainda não se sentem estimuladas pelos preços oferecidos ao insumo a investir em novos equipamentos para tornar a energia uma receita adicional aos seus tradicionais produtos.

É um potencial desperdiçado que cresce a cada safra. “Pelo aumento de produção de matéria-prima (cana), pelo incremento da tecnologia empregada e pelas possibilidades de aproveitamento da palha resultante da colheita mecanizada, a cada dia que passa o potencial de geração de energia do setor está crescendo mais”, confirma o assessor de bioeletricidade da Unica, Onório Kitayama.

Com isso, o setor sucroalcooleiro terá potência para atender, sozinho, todo o volume adicional de energia ainda não contratado para 2011. “Pode atender não só a demanda de 2011, como a de 2012 e 2013”, garante o consultor Mário Veiga. (veja gráfico).

A Unica também assegura que o setor terá potência para injetar no mercado elétrico nacional 11.500 Megawatts médios na safra 2015/16, quando processará 829 milhões de tonelada de cana, e 14.400 Megawatts médios em 2020/21 – neste ciclo, a entidade prevê produção de 1.038 bilhão de toneladas da matéria-prima. O volume, conforme a entidade, responderia por 15% da matriz energética nacional no período.

Um estudo da Koblitz mostra que a projeção da Unica pode estar sendo até conservadora. Segundo os cálculos da empresa, o setor é capaz de elevar os atuais 3.000 MW de potência instalada para 29.900 MW (quase 12 mil MW médios) antes mesmo de 2015. O levantamento estima que quando as usinas nacionais estiverem processando 500 milhões de toneladas de cana, volume previsto para antes de 2010 – na safra 2007/08 a colheita alcançou 475, 1 milhões de toneladas do produto.

Quando o setor estiver moendo 500 milhões de toneladas de cana, terá capacidade para produzir 4.886 MW médios, apenas considerando geração de energia com bagaço. A palha e os ponteiros vão agregar maior volume para co-geração. Hoje, um terço da energia da cana presente nos resíduos é desperdiçada em decorrência do corte manual, que exige a queima da cana no campo. Em São Paulo, maior Estado produtor de cana do País, o fim da queimada do material foi antecipada de 2021 para 2014 em um acordo entre as usinas e o governo estadual.

De cada tonelada de cana, 140 quilos são de palha e ponteiros. Desse volume 50% podem ser usados para gerar energia – por questões agronômicas, a outra metade deve ficar no campo. De acordo com a Kobltiz, se usar palhas e pontas, o setor terá mais 6.518 MW médios de excedentes. “O material tem um poder calorífico para gerar energia que não pode ser desprezado”, aponta o diretor-superintendente da Usina Cidade Gaúcha (Usaciga), Dario Costa Gaeta.

Segundo Kitayama, se os obstáculos e entraves atuais forem resolvidos, a tendência é o setor passar a gerar energia como um produto. Para a Unica, a bioeletricidade pode se tornar no futuro mais importante do que o açúcar para o faturamento das usinas.

Em algumas unidades, a energia já é mais rentável do que o açúcar. “Na situação atual de mercado, devido ao contexto internacional, o açúcar está com preço muito baixo. O aumento da demanda de energia somada um crescimento de nossa economia faz com que esta atividade seja um negócio cada vez mais atraente e rentável”, afirma Gaeta, da Usaciga. Ele acredita que o panorama deve permanecer nos próximos cinco anos.

Além disso, acrescenta o executivo, a energia tem a vantagem de apresentar um custo operacional baixo e não manifestar oscilações de preços como os mercados de álcool e açúcar. Com renda fixa, o produto gera receita estável, o que melhora a estabilidade do balanço da empresa, diz.

Divulgação/Usaciga
Nova central elétrica da Usaciga teve investimento de R$ 65 milhões: capacidade suficiente para abastecer uma cidade de 100 mil habitantes

Investimentos de R$ 75 bilhões

Para oferecer os volumes de energia necessários ao Brasil e transformá-la em produto rentável, o setor precisará investir em tecnologia de alta pressão e disseminar o uso da palha como combustível para caldeiras, o que apenas quatro unidades fazem atualmente. (veja texto na página 43)

Segundo cálculos da Koblitz, o aproveitamento das oportunidades de geração de energia com bagaço de cana, demandam aportes R$ 36,7 bilhões. O uso da palha consumirá mais recursos: R$ 37,9 bilhões. No total, serão necessários R$ 74,7 bilhões.

De acordo com a empresa, se os investimentos forem concretizados, o setor adicionaria ao seu faturamento anual, de R$ 30 bilhões/ano com os negócios voltados para açúcar e álcool, cerca de R$ 14 bilhões/ano proveniente da comercialização de energia, o que representa um incremento de aproximadamente 45% na receita. “Além disso, seria possível acrescentar R$ 1 bilhão com a venda de créditos de carbono”, avalia Luiz Otávio Koblitz

Ele acredita que o setor investirá todo esse volume de recursos de uma forma gradativa. “O segmento sucroalcooleiro chegaria a maior parte desse potencial, 70% pelo menos, em 10 anos”.

Uma parte do investimento já começou a ser aplicado. Com a recente inauguração uma termoelétrica movida a queima do bagaço de cana, a Usaciga, de Cidade Gaúcha/PR, acrescentou a energia elétrica ao seu negócio - a potência anterior instalada, 8,6 MW/h, era utilizada apenas para auto consumo.

A nova central elétrica da usina, que demandou investimento inicial de R$ 65 milhões, ampliou a potência instalada para 45 MW/h, limitada a uma disponibilidade de geração de 34 MW/h - a capacidade de exportação é 23,3 MW/h, que serão comercializados junto ao sistema Proinfa/ Eletrobrás, com contrato de 20 anos. A nova receita irá representar aproximadamente 10% do faturamento da empresa.

O potencial total de geração será atingido após instalação de uma nova caldeira a partir de 2009, que também viabilizará o aproveitamento da palha não queimada nos canaviais. Como o aproveitamento deste resíduo, a usina, que passa a produzir 2,5 milhões de toneladas de cana por ano, prevê aumentar a potência instalada para 70 MW/h.

Além disso, outras duas unidades da empresa em construção, localizadas em Eldorado/MS e Santa Mônica/PR, serão equipadas com caldeiras de alta pressão e acionamentos elétricos e terão potência total de 100 MW/h cada, com ¼ desse volume gerado desde a primeira moagem. “A nossa intenção é fazer da energia um produto dessas usinas também, com contratos a longo prazo. Hoje não se concebe mais projetos sem cogeração de energia”, informa Gaeta.

Mas nem todos os investidores se sentem estimulados com a Usaciga. O setor ainda reclama que alguns entraves dificultam a viabilização de investimentos e afugentam as usinas dos leilões de energia.

As reivindicações centrais envolvem soluções para atual dificuldade de acesso e conexão direta na rede de transmissão das usinas às redes elétricas, maior agilidade no processo de licenciamento ambiental e a valoração de preços maior à energia cogerada. (veja texto página 42).

Todos os problemas já foram expostos ao governo, que anunciou a realização de um leilão especial de contratação de bioeletricidade para os anos de 2010, 2011 e 2012. “O total a ser contratado não foi divulgado, mas pode atingir 3 mil MW”, estima Mário Veiga.

Para alguns especialistas, os volumes serão vendidos de acordo com a atendimento aos outros estímulos solicitados ao governo. Se as respostas demorarem, acreditam, restarão ao Brasil duas alternativas: economizar energia e rezar para São Pedro.

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